Minhas madrugadas de leitura na quarentena continuam a render frutos, nem sempre doces.
Ontem, à custa de algumas horas de sono, terminei Maus, de Art Spiegelman, um genial e perturbador livro em quadrinhos que conta a história do Holocausto pela visão do pai do autor, Vladek, judeu polonês que vivia em Sosnowiek, próximo da fronteira com a Alemanha, quando a 2a Guerra eclodiu.
É angustiante assistir a sociedade polonesa ser devorada de pouquinho em pouquinho, com restrições cada vez mais fortes de comportamento, horário e movimentação. Com as pessoas que desaparecem por motivos banais e começam a desaparecer por motivo nenhum. Angustiante porque, como caranguejos cozidos em água cada vez mais quente, aquele povo não desconfia do que o aguarda, muito ao contrário. Acham que a guerra durará pouco. Que os nazistas não vieram para ficar.
Histórias sobre o Holocausto sempre me assombraram e, felizmente, ainda é assim. Deus tenha piedade do homem que deixa de se assombrar, diante de tais horrores.
Mas Maus, em sua honestidade crua e impiedosa, traz um ponto de vista pouco explorado, nas outras obras sobre o tema que conheci - a ilusão de estabilidade da sociedade em que vivemos; a fragilidade da teia de relações que mantemos e que, na maior parte dos casos, nos define.
Maus dá pouca atenção aos nazistas. São pano de fundo, criaturas sem rosto, um mal que está por toda parte, mas no qual a análise não se aprofunda. Maus trata, sim, dos vizinhos que denunciam vizinhos cujas casas frequentavam. Dos amigos que apunhalam amigos por mesquinhos favores. Dos que escondem famílias em seus porões enquanto elas podem pagar, mas que as mandam para a rua e para a morte, quando seu dinheiro acaba. Dos judeus que traem seu próprio povo para integrar a polícia judia, verdadeiros capitães do mato. Dos miseráveis que roubam de outros mais miseráveis que eles. Dos prisioneiros que se dispõem a serem guardas e carrascos apenas pela oportunidade de terem alguém abaixo de si, para humilhar e torturar.
Maus é brilhante, contundente e importante. Sua lição mais crucial talvez seja a de que a estabilidade de nossas vidas e tudo que nos rodeia não passe de um perigoso sonho. Poeira. Castelo de cartas que não resiste ao sopro gelado da morte.
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